A agricultura privatizada da Ucrânia: um fiador faminto da segurança alimentar global – Parte 1
Por Peter Korotaev, publicado em 17 de maio de 2023 The Canada Files.
Artigo original: https://www.thecanadafiles.com/articles/ukraines-privatized-agriculture-a-hungry-guarantor-of-global-food-security
Nota do editor: Esta é a primeira parte de uma série de três partes sobre como o Canadá e o Ocidente em geral usaram uma queixa do governo pós-golpe de Maidan para privatizar a agricultura em grave detrimento dos ucranianos comuns. Esta parte se concentra em como a privatização geral foi gravada em pedra e funciona agora.
O ex-embaixador canadense na Ucrânia, Roman Waschuk, disse que a Ucrânia é um país onde o FMI faz 'experimentos econômicos'. A Ucrânia é um laboratório para testar políticas neoliberais radicais, independentemente dos danos que os ucranianos comuns enfrentam com elas.
Dos 60 milhões de hectares de terra da Ucrânia, 55% (33 milhões de hectares) são considerados aráveis - o maior número desse tipo na Europa. Algumas estimativas mais otimistas colocam esse número em 74%. A média mundial é de 12,6%. 2,3 por cento da terra arável do mundo está na Ucrânia. Muito se fala da Ucrânia como o 'celeiro da Europa' – na verdade, as terras aráveis da Ucrânia representam 25 por cento das da Europa.
As coisas não são tão boas quando se trata da agricultura privatizada e capitalista da Ucrânia. Enquanto exporta muito óleo de girassol e milho, a produção de alimentos despencou por décadas, a terra é monopolizada por grandes agropecuárias, a qualidade da terra está caindo rapidamente devido a práticas agropecuárias insustentáveis e a população sofr]e com níveis iguais ou piores de fome como países da América Latina.
O poder das grandes propriedades agropecuárias
Relações agrícolas da Ucrânia
Na década de 1990, houve uma privatização do sistema agrícola estatal soviético. Mas em 2001, foi declarada uma moratória sobre a compra ou venda de terras agrícolas. Como resultado, a maioria das terras agrícolas ucranianas ainda pertence a pequenos agricultores. Esses pequenos agricultores totalizaram quase 7 milhões em 2019, ou um sexto da população. A restante terra agrícola é propriedade do governo.
A moratória foi introduzida porque muitos camponeses ucranianos estavam preocupados em perder suas terras para as grandes empresas, especialmente para estrangeiros. Ao contrário dos apelos dos “reformadores do mercado” nacionais e estrangeiros, a maioria dos camponeses da Ucrânia não tem interesse em privatizar suas terras. Uma pesquisa de 2005 mostrou que 96 por cento dos agricultores da Ucrânia não queriam iniciar a agricultura individual. Uma pesquisa da USAID realizada em 2015 mostrou que apenas oito por cento dos proprietários de terras desejavam vendê-la no primeiro ano após o levantamento da moratória, e uma pesquisa de 2017 feita pelo instituto de economia agrária mostrou que apenas 10 por cento dos proprietários de terras queriam vender suas terras.
Até 1º de julho de 2021, as terras ucranianas não podiam ser compradas, mas apenas arrendadas. Devido à pobreza dos camponeses ucranianos, a maioria (56%) é forçada a arrendar seus pequenos lotes a empresas privadas. Outros 29 por cento trabalham eles próprios na terra, 8 por cento arrendam-na ao governo e 7 por cento não fazem nada com a sua terra. Muitos arrendam para empresas maiores – agroholdings. As terras pertencentes ao governo também são frequentemente arrendadas a grandes propriedades agrícolas. Como resultado, essas agropropriedades desempenharam um papel dominante na agricultura capitalista da Ucrânia.
A escala das explorações agrícolas
O principal portal de agronegócios ucraniano é apropriadamente chamado de 'latifundiário'. Não apenas as relações agrícolas ucranianas são frequentemente comparadas às da América Latina, mas a Ucrânia realmente supera os números mundiais a esse respeito.
As maiores explorações agrícolas ucranianas são muito poderosas. Em 2017, duas das agropecuárias da Ucrânia estavam na lista das 20 melhores do mundo, classificadas por quantidade de terra controlada. A NCH Capital, que distribui uniformemente suas terras na Rússia e na Ucrânia, está entre as 10 primeiras. A maior propriedade agrícola da Ucrânia, Kernel, controlava 510.000 hectares de terra em 2021. Kernel planejava aumentar para 700.000 após as 'boas notícias' sobre o levantamento de Zelensky em 2020 da moratória sobre a venda de terras agrícolas. A Kernel recebeu US$643 milhões de lucro bruto no exercício de 2021, 5,2 vezes mais do que recebeu no ano anterior. Esta empresa sozinha é responsável por 22 por cento das exportações de óleo de girassol da Ucrânia, 20 por cento das exportações de grãos da Ucrânia e cerca de 10 por cento das exportações totais de grãos da Ucrânia. As agroholdings foram responsáveis por 22% da produção agrícola total da Ucrânia em 2017, embora, como veremos mais adiante, tenham pouco a ver com a segurança alimentar da Ucrânia.
É difícil dizer quanta terra ucraniana é controlada por grandes propriedades agrícolas, tanto por causa da falta de transparência dessas relações de controle de aluguel (relativamente poucas terras ucranianas foram vendidas desde o levantamento da moratória) quanto pela rápida mudança do estado do setor. Em seu relatório de 2020, a Land Matrix registrou 242 negócios de terras (incluindo contratos de aluguel e arrendamento) na Ucrânia, levando a um tamanho total de 3,24 milhões de hectares sob controle contratual por agroholdings. Isso equivale a 7,6 por cento de todas as terras agrícolas e 10 por cento de todas as terras aráveis.
Mas, como a própria Land Matrix admite, isso é subestimado, pois considera apenas negócios transparentes.
De acordo com 'Latifundist', em 2021, as 117 maiores explorações agrícolas na Ucrânia controlavam diretamente 6,45 milhões de hectares de terra, o que representa 16% de todas as terras agrícolas e 20% de todas as terras aráveis. Em 2020, de acordo com a 'Eco-ação' e o Instituto de Geografia da Ucrânia, apenas as 10 maiores agropecuárias controlavam 2,66 milhões de hectares de terras aráveis. De acordo com o influente portal de notícias do agronegócio 'Landlord', 45 agroholdings controlam 4,1 milhões de hectares de terras aráveis, com uma receita total de US$10,8 bilhões.
Em comparação, nenhum país da UE além da Romênia (não coincidentemente um dos membros mais pobres da UE) tem grandes propriedades agrícolas. Na maioria dos países, como a Alemanha, nenhum indivíduo ou empresa possui mais de 30.000 hectares de terra, enquanto o tamanho médio das parcelas agrícolas é de 20 hectares. Devido aos efeitos negativos sociais, econômicos e ecológicos da dominação da agricultura por grandes propriedades agrícolas, apenas os países pobres e imperializados da América do Sul, Ásia e África têm propriedades agrícolas comparáveis às da Ucrânia1.
Quanta terra as propriedades agrícolas estrangeiras controlam?
De acordo com o relatório de 2021 da Land Matrix, a Ucrânia ocupa o segundo lugar na lista global da quantidade de terras possuídas por estrangeiros – três milhões de hectares. Derrotada apenas pela Indonésia, a Ucrânia foi seguida pela Rússia, Papua Nova Guiné e Brasil. Outro estudo descobriu que 15% das terras agrícolas da Ucrânia pertencem a estrangeiros, ou quase 20% das terras aráveis.
No entanto, esses números provavelmente estão subestimados. O Latifundist escreve que apenas 10 agropecuárias estrangeiras controlam de dois a três milhões de hectares. As maiores eram empresas americanas – as duas maiores controlavam 300.000 e 195.000 hectares. Uma das maneiras pelas quais as empresas estrangeiras contornam as restrições à propriedade de terras na Ucrânia é comprá-las como garantia de um banco ucraniano. Este método também descontou enormemente as terras ucranianas através do uso do programa ocidental 'Prozorro', que detalharemos em nosso último artigo.
Outra razão pela qual os estrangeiros possuem mais do que parece é dada pelo jornalista econômico ucraniano Roman Gubrienko. Ele escreve que 60-70 por cento da terra controlada por agroholdings é na verdade de propriedade estrangeira, embora com uma fachada ucraniana simbólica. Um relatório de 2023 sobre a agricultura da Ucrânia descobriu que nove em cada dez dos principais acionistas da Kernel são europeus ou americanos. O quarto maior investidor da Ucrânia em 2020 foi o fundo Sovereign Wealth da Noruega, que possui ações tanto da Kernel quanto de sua concorrente agrícola MHP. Blackrock e Goldman Sachs são alguns dos outros grandes grupos financeiros globais fortemente envolvidos na agricultura da Ucrânia (grifo nosso).
Relações indiretas de controle por agropecuárias
Também é enganoso levar em conta apenas o controle jurídico direto sobre a terra por meio de contratos de aluguel. Isso não leva em conta o controle indireto sobre a produção agrícola efetuado pela dominação das grandes propriedades agrícolas de bens de capital agrícolas. Embora financeiramente fora do alcance dos agricultores individuais pobres que nominalmente possuem a maior parte das terras ucranianas, as grandes propriedades agrícolas possuem a maioria dos equipamentos de processamento, logística, elevadores e armazenamento. Sem o equipamento adequado, os camponeses são obrigados a vender sua produção por preços muito baixos. Como as tradings e as agropecuárias possuem dois terços de todos os equipamentos de elevadores agrícolas, elas podem facilmente forçar os camponeses menores a vender sua produção por preços baixos e depois revendê-la no exterior por preços mais altos (um argumento muito interessante, joga luz na necessidade de intensificar tecnologicamente a agricultura familiar, a exemplo do que a China e a Rússia estão fazendo atualmente, nota do tradutor).
Kernel não é apenas a maior agropecuária, mas também a maior comercializadora de produtos agrícolas – foi responsável por 13% de todas as exportações de grãos da Ucrânia em 2019-20. Os três principais comerciantes foram responsáveis por entregar 30 por cento das exportações da Ucrânia. Os cinco maiores proprietários privados de elevadores controlam um terço de todos os elevadores. Kernel também é o maior proprietário privado de elevadores. Isso significa que, em algumas regiões, agropecuárias como Kernel desfrutam do monopólio dos elevadores.
Como resultado, as agropecuárias podem ditar os preços aos camponeses menores e, na realidade, controlar muito mais da indústria agrícola do que o indicado pelas terras que controlam legalmente. Esses meios indiretos de controle são o motivo pelo qual Natalia Mamonova, acadêmica especializada no tema, escreveu em 2015 que 60% das terras agrícolas ucranianas são controladas pelo grande agronegócio.
Gigantes privilegiados
As agropecuárias têm poder político à altura de sua força econômica. Por meio de seu lobby, o 'Clube Ucraniano de Negócios Agrários' (‘Ukrainian Club of Agrarian Business’ - UCAB), eles defendem leis que aumentem os impostos para os pequenos agricultores. Embora a lei semelhante 3131 não tenha passado pelo parlamento (Verkhovna Rada – VR), a lei 5600 foi aprovada pelo presidente Zelensky em dezembro de 2021. Essa lei previa o aumento da carga tributária dos pequenos e médios agricultores. O comitê de especialistas do VR criticou a lei, argumentando que ela ignora as especificidades sazonais de várias formas de agricultura e que se baseia na suposição não comprovada de que pequenos agricultores evitam pagar impostos.
De acordo com o comitê de especialistas do VR:
'o aumento da pressão fiscal sobre os pequenos produtores pode levar à venda ou arrendamento de terras por eles (o que pode ser uma das consequências negativas da adoção do projeto) e levar ao aumento do desemprego no meio rural, saída de mão de obra para cidades e no estrangeiro, diminuição da concorrência e monopolização da produção agrícola, alteração da estrutura da produção agrícola, da estrutura mercantil de exportação-importação, aumento da oferta de preços no mercado agroalimentar nacional, etc’.
O governo fez da liberalização agrícola sua principal prioridade, descrevendo regularmente a privatização da terra em 2020 como uma de suas maiores conquistas. Como Zelensky colocou em um discurso carregado de emoção em 2020 para os agricultores (onde ele prometeu créditos escassos) 'sem reforma agrária, não temos chance de nos tornar o celeiro da Europa'. O chefe do partido Servo do Povo, David Arakhamia, cantou elogios à lei 5600, pressionando o parlamento para que a ratifique o mais rápido possível, apesar das críticas de especialistas. Taras Vysotsky, vice-ministro do Desenvolvimento Econômico, Comércio e Agricultura e um dos principais defensores das reformas de mercado, foi diretor geral da UCAB até 2019.
Portanto, não é surpresa que enquanto o governo implementa leis que empobrecem os 2,3 milhões de pequenos ou médios agricultores da Ucrânia, ele aprova enormes subsídios para grandes propriedades agrícolas. Em janeiro-setembro de 2017, a maior agropecuária avícola da Ucrânia e a terceira maior proprietária de terras, a MHP (pertencente a Yury Kosyuk), recebeu 1,25 bilhão de hryvnias em subsídios de 'apoio agrário' do orçamento ucraniano. Em comparação, o orçamento de 2017 envolveu 1 trilhão de hryvnias em gastos. Kosyuk também foi conselheiro do então presidente da época, Poroshenko, e o sexto ucraniano mais rico (US$ 900 milhões). Jornalistas independentes também descobriram que Kosyuk era uma figura intermediária chave em imensos esquemas de contrabando de Donbass que ligavam o diplomata americano Kurt Volker e Poroshenko. A empresa, como qualquer agroholding e a maioria das grandes empresas ucranianas, tem sua sede em Chipre (anteriormente em Luxemburgo). Isso significa que não apenas recebe enormes subsídios orçamentários, mas também sonega impostos. Em 2019, a empresa anunciou que faria novos investimentos nos Bálcãs e na Arábia Saudita em vez de na Ucrânia.
A MHP recebeu US$230 milhões (6,2 bilhões de hryvnia) em lucros puros em 2017. Em 2018, a empresa de Kosyuk recebeu 25% de todos os subsídios agrícolas estatais , 970 milhões de hryvnia. Em 2018, o governo aprovou uma lei que dá às grandes propriedades agrícolas (antes isso só era possível para pequenos agricultores) o direito de receber uma compensação do governo pelos juros do crédito.
A segunda empresa mais privilegiada foi a UkrLandFarming, que possui a segunda maior área agrícola depois da Kernel); recebendo 444 milhões de hryvnias. Esta empresa e a MHP juntas receberam metade de todos os subsídios agrários em 2017. No mesmo ano, de acordo com estatísticas estaduais, MHP recebeu 1,8 bilhão de hryvnia em subsídios. Duas empresas pertencentes a membros do bloco parlamentar de Poroshenko receberam um total de 3,5 milhões de hryvnias, a mesma quantia gasta na modernização dos postes de iluminação de toda a cidade de Khmelnytsky. 60 milhões de hryvnia também foram recebidos pelo negócio agrícola de um deputado da Verkhovna Rada pertencente ao Comitê Agrário do parlamento. Até mesmo os 'radiosvoboda' pró-ocidentais que conduziram esta investigação relataram que é possível que os números reais sejam maiores.
Além dos subsídios estatais aos aliados de Poroshenko, como Kosyuk, evitar a tributação é em si uma forma de subsídio. E isso é exatamente o que Zelensky legislou em 2021, assinando uma redução nos impostos sobre valor agregado de 20% para 14% para importações e exportações de uma variedade de produtos agrícolas de primeira linha, incluindo milho, girassol e trigo favoritos de agropecuárias.
O agronegócio ucraniano está muito abaixo na lista dos principais contribuintes ucranianos, uma lista que em si não está cheia de pessoas de alto desempenho. O principal contribuinte agrícola é o Kernel, que ainda ocupava apenas o 147º lugar em 2020. Pagou apenas $ 18 milhões em impostos em 2018. No mesmo ano, Kernel ganhou US$513 milhões em lucros e seu proprietário estava entre os 20 homens mais ricos da Ucrânia. MHP pagou ainda menos.
De acordo com a ONG Associação Agrária Ucraniana, apenas um quinto da assistência estatal designada a pequenos agricultores chegou ao seu destino em 2018, totalizando apenas US$7,4 milhões. O Banco Mundial deu apenas US$5,4 milhões em apoio a pequenos agricultores ucranianos. Mesmo esse pequeno valor não veio do próprio BM, como é o caso de seus empréstimos ao grande agronegócio, mas exigia que os pequenos agricultores usassem suas safras futuras como garantia para receber capital. Ela e outras instituições financeiras ocidentais acharam muito mais importante pressionar pela liberalização agrícola que destrói pequenos agricultores e encoraja o crescimento de grandes propriedades agrícolas. No artigo final desta série, examinaremos mais de perto o papel das instituições financeiras ocidentais em encorajar a ascensão do grande agronegócio às custas dos pequenos agricultores.
Analistas das relações agrícolas da Ucrânia também observaram como é difícil para pequenos agricultores receber crédito. Os bancos trabalham principalmente com clientes que possuem mais de 500 hectares de terra, e exigem extensa burocracia, além de serem geralmente de curto prazo e envolverem altas taxas de juros.
O declínio do emprego agrícola
O período pós-soviético viu um declínio constante na quantidade de terras agrícolas controladas por agricultores familiares. Isso ocorre porque a extinta União Soviética fornecia grandes subsídios aos camponeses, comprando grande parte de sua produção e organizando outros aspectos da produção. O Banco Mundial, por outro lado, afirmou que a chave para o desenvolvimento da agricultura ucraniana por meio da privatização é 'a expansão de produtores com maior produtividade e incentivos para produtores de menor produtividade melhorarem ou saírem, à medida que o preço da terra aumenta'.
Quanto mais as relações agrícolas foram liberalizadas, mais o emprego rural diminuiu. Subindo ligeiramente em relação a 2012-13, caiu drasticamente de 3,3 milhões para 3 milhões em 2013-14. Em declínio a cada ano desde então, até 2021, apenas 2,69 milhões de pessoas estavam empregadas na agricultura. Portanto, não é surpresa que a maioria dos agricultores ucranianos tenha consistentemente afirmado sua relutância em se tornarem agricultores capitalistas individuais.
Kernel, a maior agropecuária da Ucrânia, controla 500.000 hectares de terra, cerca de 1,5 por cento das terras aráveis da Ucrânia, mas emprega apenas 15.000 trabalhadores. Isso significa que, se toda a terra arável da Ucrânia fosse usada por agropecuárias semelhantes a Kernel, seriam necessários apenas 990.000 trabalhadores. Dado que as explorações agrícolas empregam muito poucas pessoas, a diminuição do emprego agrícola deve-se certamente ao aumento do desemprego entre os agricultores individuais. Enquanto o emprego total caiu, de 2014 a 2021, a Ucrânia aumentou as exportações anuais de óleo de girassol favorito da agropecuária de 12 milhões para 16 milhões de toneladas.
A controversa privatização das terras agrícolas
Reformas impopulares
A mercantilização da agricultura ucraniana sempre foi muito impopular. De acordo com uma pesquisa de 2020, apenas 15% dos ucranianos apoiaram a privatização de terras agrícolas. No entanto, sob o disfarce das restrições de quarentena da Covid às reuniões públicas, no mesmo ano, Zelensky suspendeu a moratória na compra e venda de terras agrícolas. Zelensky nunca deixa de lembrar as audiências dos estados ocidentais deste ato para provar suas credenciais como um 'defensor da democracia de livre mercado'. É bem conhecido e prontamente admitido pelos meios de comunicação ucranianos pró-privatização que o levantamento da moratória foi devido à pressão do FMI.
O acima mencionado torna difícil descrever o levantamento da moratória como particularmente 'democrático'. Sobre o tema da democracia, Kernel foi acusado de capturas de terras ' invadidas', por meio das quais eles ameaçam ou forçam pequenos agricultores a assinar os direitos sobre suas terras. Em 2016, foram registrados 7.150 casos de capturas de terras agrícolas.
Roman Leschenko, ministro da política agrária e alimentação, tinha muito a dizer sobre a necessidade da reforma agrária. Embora afirmasse que os ucranianos foram "intimidados e induzidos ao erro" a se oporem à privatização de terras agrícolas, ele ficou muito satisfeito com a decisão "histórica" de privatizar as terras em 2020. Mas lamentou que essa lei permanecesse "altamente conservadora". O que ele quis dizer com isso foi o fato de que a lei de 2020 não permitia que estrangeiros comprassem terras – essa questão seria decidida não antes de 2024.
Mas o jornalista ucraniano Roman Gubrienko mencionou o fato de que, vários meses depois, houve uma emenda à lei permitindo que estrangeiros comprassem o terreno usando-o como garantia bancária. Mesmo a parte mais impopular da reforma agrária – permitir que estrangeiros comprem terras é contestado por 81% dos ucranianos – passou facilmente, apesar dos temores de Leschenko. Mesmo sem a brecha, os estrangeiros ainda tinham acesso bastante fácil à terra – empresas americanas, sauditas e europeias controlam milhões de acres.
O preço da terra
Em 2020, o ministro da economia ucraniano, Taras Vysotsky, previu que o preço médio por hectare de terra ucraniana estaria entre US$1.480 e US$2.224. Mas estimativas bastante diferentes surgiram de vários números do governo, variando de US$1.000 a US$2.500 por hectare. Vysotsky também 'previu', ou ameaçou, como disse o jornalista ucraniano Gubrienko, que o preço da terra cairia de US$2.200 para US$1.500 se houvesse 'restrições' no processo de privatização, como o tamanho da terra por proprietário ou investidores estrangeiros . Enquanto isso, todas essas previsões estão muito longe do preço mínimo de US$8.000 a US$10.000 por hectare de terra polonesa, que foi usado durante anos para tentar os agricultores ucranianos a concordar com a privatização. A terra nos países da Europa Ocidental custa US$30.000 a US$64.000 por hectare.
Em janeiro de 2020, Gubrienko previu que o terreno seria vendido ainda mais barato. Ele baseou isso nos resultados da pesquisa de 2019, que mostraram que as terras ucranianas geralmente rendem cerca de US$130 por mês para seus proprietários. Como resultado, ele previu preços no máximo de US$1.000 a US$1.200 por hectare. Gubrienko previu que o aumento na oferta de terras reduziria ainda mais o preço. O estado também possui de 7 a 10 milhões de hectares de terras agrícolas e afirmou que planeja receber mais de US$1 bilhão com a venda de terras em 2020. A dificuldade de garantir crédito na Ucrânia devido às duras reformas bancárias do FMI é citada por ele como outro fator que está prejudicando preços da terra. A baixa qualidade do solo ucraniano é outro fator, ela própria resultado do cultivo intensivo de monoculturas por agropecuárias.
Nos primeiros três meses após a abertura do mercado de terras, o preço médio por hectare foi de US$1.690. A média mais baixa foi na região de Kherson, com apenas US$830. No entanto, o processo não foi transparente – essas médias levam em conta apenas 54% das vendas.
A publicação liberal Liga promete que o preço vai subir no futuro. Também inclui cálculos fornecidos por um think tank patrocinado pela UE 'Land Transparency' em cooperação com um funcionário do Banco Mundial, segundo o qual quaisquer restrições à concentração da propriedade da terra ou ao controle estrangeiro sobre a terra levarão a uma taxa mais lenta do crescimento do PIB ucraniano. e uma taxa mais lenta de crescimento nos preços da terra. No cenário mais desregulado, a Ucrânia supostamente ganharia US$10 bilhões. Tymofiy Mylovanov, um conselheiro notoriamente neoliberal do gabinete do presidente, prometeu que a privatização da terra aumentaria o PIB em 1,5% ao ano.
A mesma publicação da Liga registra que três meses depois (janeiro de 2022), o preço médio da terra havia caído para US$1.500 por hectare. Embora o artigo não mencione isso, a ameaça de guerra provavelmente desempenhou um papel aqui. No entanto, em meio à antecipação da guerra (dezembro de 2021), o ministro da economia prometeu que o preço das terras ucranianas subiria para $ 2.200 em 2 a 3 anos. A fé no mercado não conhece limites.
Comércio agrícola com a UE
As nações ocidentais e os latifundiários agrícolas domésticos pressionaram incessantemente o governo do governo ucraniano a suspender a moratória na compra e venda de terras agrícolas. Este movimento deu poder a grandes propriedades agrícolas. Essas empresas, que decidem em que investir com base nas tendências de preços nos principais mercados de exportação como o da UE, começaram a aprofundar a relação comercial neocolonial da Ucrânia com a UE. Onde a UE vende meios de produção do agronegócio ucraniano e produtos alimentícios processados, a Ucrânia vende de volta matérias-primas agrícolas baratas.
Ilusões e realidade da 'eurointegração'
A história moderna da Ucrânia foi transformada pela questão da assinatura de um acordo de livre comércio (Free-Trade Agreement - FTA) com a UE. Isso geralmente foi mal interpretado por seus apoiadores como sendo igual a ingressar na UE.
Todos os tipos de promessas foram feitas sobre os resultados mágicos do FTA. Foi dito por apoiadores como o primeiro-ministro de Maidan, Yatsenyuk (do famoso telefonema de Victoria Nuland) para trazer prosperidade econômica instantânea. Eles frequentemente se referiam aos níveis de pensões e salários da Alemanha como uma óbvia refutação de todos os que duvidavam da 'eurointegração', que apontavam razoavelmente para os efeitos desindustrializantes de dar aos capitalistas da UE acesso ao mercado ucraniano e os termos inerentemente desiguais do acordo. Yatsenyuk e os outros 'apoiadores de princípios da Eurointegração' (geralmente jornalistas urbanos com dinheiro de subsídios ocidentais que nunca pisaram em uma fábrica) sempre adoraram falar sobre como 'a integração com a UE dará aos exportadores ucranianos acesso ao maior mercado do mundo'.
O problema é que isso sempre foi explicitamente contrariado pelo atual FTA, que entrou em prática em 2016. Envolve cotas severas para as principais exportações da Ucrânia. Isso significa que apenas uma quantidade comparativamente pequena das exportações da Ucrânia pode realmente chegar à UE sem pagar tarifas, enquanto os produtores europeus muito mais fortes (e altamente apoiados pelo Estado) estão livres para invadir o mercado ucraniano.
2019 foi o melhor ano comercial da Ucrânia pós-Maidan2 [2], mas as exportações para a UE aumentaram apenas 3%. Durante a pandemia de Covid de 2020, enquanto a UE restringia o acesso aos seus mercados, proibiu a Ucrânia de tomar qualquer medida para proteger seus mercados. Como resultado, as exportações para a UE caíram 13,2%.
As exportações totais da Ucrânia em 2019 foram de apenas US$63,5 bilhões, de acordo com o Banco Mundial – em 2012, foram de US$86,5 bilhões. As exportações industriais para a UE caíram 2,3 por cento. Enquanto as exportações totais de vegetais da Ucrânia aumentaram de US$6,6 bilhões para US$17,6 bilhões em 2010-2020, suas exportações de máquinas e equipamentos de transporte diminuíram de US$9,1 bilhões para US$5,4 bilhões. As exportações para a Europa representaram apenas US$3 bilhões do aumento das exportações de hortaliças – a China e outros países do 'Oriente bárbaro', tão vilipendiados no discurso ucraniano hegemônico pós-maidan, são responsáveis por grande parte do crescimento de suas exportações. O lento crescimento das exportações para a UE não foi suficiente para compensar a perda do mercado russo de bens industriais e o declínio geral das exportações devido à desindustrialização induzida pelo FTA.
Desigualdade programada do Acordo de Livre Comércio da UE
Em 2021, aproximou-se o período de cinco anos em que a Ucrânia tinha o direito de renegociar o FTA da UE. Algo que se aproxima das negociações sobre o tema ocorreu. Ao que a UE respondeu, como sempre, que não poderia haver tais relaxamentos nas relações comerciais até que a Ucrânia se esforçasse mais para implementar as reformas exigidas pela UE. As reformas exigidas pela UE, como a 'luta contra a corrupção', envolvem invariavelmente a remoção do apoio à indústria ucraniana.
O representante da UE declarou que a Ucrânia não teria acesso total ao mercado de compras estatais da UE, nem um relaxamento no regime de cotas. As coisas só mudaram em 2022, quando a indústria da Ucrânia foi amplamente destruída pela guerra – então a UE declarou que a Ucrânia poderia ter acesso livre de tarifas aos mercados da UE por um período limitado.
O que são esses contingentes tarifários? O FTA de 2016 concedeu acesso isento de tarifas a 36 (+4 a mais) grupos de exportações ucranianas. Apenas as exportações agrícolas receberam esse privilégio. O barulho ocasional sobre o acesso livre de tarifas para produtos industriais ucranianos nunca deu em nada até 2022. O FTA envolveu um pequeno aumento em algumas dessas cotas ao longo do tempo. A tabela a seguir mostra a evolução ao longo do tempo dessas quotas isentas de tarifas apenas para as exportações cujo volume anual exceda 10.000 toneladas.
Essas cotas são altamente restritivas. Em 2021, a Ucrânia exportou para o mundo inteiro 42 vezes mais trigo do que o permitido pelas cotas da UE e 21 vezes mais do que as cotas da UE. A UE importou 18,5 vezes mais milho da Ucrânia do que as cotas permitiam. Isso ocorre apesar do fato de que a Ucrânia é de fato uma fonte crucial de grãos para a UE – a segunda maior fonte depois da França, respondendo por 14% do total das importações da UE de milho, trigo e outros grãos.
Enquanto a Ucrânia exportou 81.000 toneladas de mel em 2020, só é permitido seis mil toneladas pelas cotas de 2021. As cotas de leite permitidas pelo FTA foram de apenas 0,007% da produção total da Ucrânia, enquanto a Ucrânia produziu 66 vezes mais carne do que o permitido pelas cotas em 2015. Em 2019, enquanto a Ucrânia exportou 414.000 toneladas de carne de frango, só foi permitida a exportação de 19.200 toneladas com isenção alfandegária para a UE. o magnata ucraniano do frango, Como disse Yury Kosyuk:
“Não houve abertura do mercado [da UE]. Você sabe, há um mecanismo na roda chamado bico de raio. Ele permite que algo passe em uma direção, mas não passe na outra direção. Esta é aproximadamente a situação que temos agora com os mercados europeus. A Europa fala sobre uma zona de livre comércio com a Ucrânia e, ao mesmo tempo, um monte de exceções e restrições foram estabelecidas para a exportação de produtos ucranianos... enquanto produzimos 1,2 milhão de toneladas de carne de frango em 2016, qualquer coisa A cota de 16.000 toneladas é cobrada com uma tarifa de mais de 1.000 euros a tonelada... A Ucrânia foi enganada por este 'acordo de livre comércio'”
A história com cotas restritivas pode ser continuada extensivamente. A Ucrânia também excede regularmente as cotas de suco, tomate e cereais.
Mesmo esses escassos benefícios são concedidos apenas a produtos agrícolas primitivos. A Ucrânia não teve sorte em receber tais privilégios por seus produtos industriais. Vale a pena mencionar alguns números impressionantes trazidos por um relatório de 2020 do ministério da economia, como parte de sua tentativa malfadada de implementar o apoio estatal à indústria nacional (posteriormente interrompido pela UE):
“…a produção de veículos automotores em 2019 foi de apenas 31,0% do nível de 2012, os produtos da indústria automobilística - 29,7%, a produção de máquinas-ferramentas - 68,2%, produtos metalúrgicos - 70,8%, engenharia agrícola produtos - 68,4 por cento”...
“Entre 2013-2019, as exportações de produtos aeroespaciais diminuíram 4,8 vezes (de US$ 1,86 para US$ 0,38 bilhão), a produção de produtos ferroviários - 7,5 vezes (de US$ 4,1 para US$ 0,5 bilhão), a produção no setor metalúrgico - 1,7 vezes (de 17,6 para 10,3 bilhões de dólares americanos), produtos químicos - em 2,1 vezes (de 4 para 1,9 bilhões de dólares)"
Por outro lado, após um período de transição de três anos, a Ucrânia foi obrigada pelo FTA a remover as tarifas de importação de uma série de importações da UE em 2019. Em 2016, o governo ucraniano concordou em remover totalmente ou reduzir as tarifas de importação para a maioria das importações da UE importações dentro de três a 10 anos. A UE ultrapassou apenas uma cota de exportação para a Ucrânia em 2017 - carne de frango. Usou apenas 5% de sua cota de exportação de carne suína e 0,5% de sua cota de açúcar.
Outras formas de protecionismo agrícola da UE
Além das cotas, o FTA da UE também obriga a Ucrânia e a UE a 'abster-se de quaisquer subsídios estatais' para exportações. Em condições em que a agricultura ucraniana é muito mais fraca do que a da UE, enquanto a UE concede hipocritamente imensos subsídios aos seus agricultores, isso naturalmente levou ao domínio das importações da UE e ao declínio da produção ucraniana.
Outra forma de protecionismo oculto são as rígidas restrições da UE às importações de alimentos. Devido a vários controles ecológicos e de qualidade, muitas exportações ucranianas não podem entrar na UE. Esta é uma das principais razões, juntamente com as pequenas cotas, que as exportações agrícolas ucranianas foram forçadas a se reorientar para a Ásia e a África.
Relações comerciais neocoloniais
Juntamente com um enorme défice comercial, a UE vende produtos transformados à Ucrânia, enquanto a Ucrânia exporta matérias-primas baratas. Um bom exemplo da natureza primitiva do setor agrícola da Ucrânia é o comércio de tratores da Ucrânia. Embora tenha exportado US$4,7 milhões em tratores em 2020, importou US$456 milhões. 59 por cento desses tratores foram importados da UE e outros 12 por cento eram dos EUA e do Reino Unido. O rico primeiro mundo importa alimentos baratos da Ucrânia, extraindo grandes receitas tarifárias no processo, e vende à Ucrânia o maquinário industrial necessário para essa agricultura.
Por exemplo, as principais exportações da Ucrânia para a UE em 2021 foram ferro e aço (20,8 por cento das exportações totais), minérios, cervo e cinzas (12,5 por cento), gorduras e óleos animais e vegetais (8,5 por cento) – principalmente semente de girassol petróleo, maquinaria eléctrica (7,8 por cento) e cereais (7,3 por cento). 'Maquinaria elétrica' é, na verdade, apenas o aparafusamento manual de fios em pequenas oficinas exploradoras como parte das cadeias de produção de automóveis europeus. As principais exportações da UE para a Ucrânia foram maquinaria (14,8 por cento de todas as exportações), equipamento de transporte e veículos (10,2 por cento), combustíveis minerais (9,4 por cento), maquinaria elétrica (9,3 por cento) e produtos farmacêuticos (5,9 por cento).
Os exportadores europeus entraram e dominaram ativamente o mercado ucraniano. Em 2019, o destino ucraniano bateu recorde de crescimento nas exportações europeias de alimentos. A Ucrânia ficou em terceiro lugar no ranking de consumidores de produtos agrícolas da União Europeia. No primeiro semestre de 2019, a UE aumentou as exportações agrícolas em 15 por cento face a 2018, atingindo os 2,26 mil milhões de euros. Em 2020, a Ucrânia importou 1.000 vezes mais manteiga da UE do que exportou. Em 2021, a Ucrânia teve um déficit comercial geral de mais de 4 bilhões de euros com a UE.
Os produtores domésticos estão perdendo concorrência e espaço nas prateleiras para os fabricantes europeus. Ao contrário da Ucrânia, os produtores na Europa são protegidos por altas taxas, cotas apertadas e recebem enormes subsídios do orçamento geral da União Europeia. O jornalista econômico ucraniano Roman Gubrienko argumenta em seus artigos sobre o assunto que o rápido avanço dos produtos alimentícios importados leva não apenas à captura do mercado e ao deslocamento do agronegócio ucraniano, mas também destrói gradualmente a base da produção doméstica de alimentos - o tema do próximo artigo.
A Austrália é uma exceção notável.
O ano de 2021 teve valores de exportação mais altos em dólares, mas isso se deveu aos aumentos de preços globais pós-covid das matérias-primas exportadas pela Ucrânia.