Golpe no Peru: agente da CIA que se tornou embaixadora dos EUA se reuniu com ministro da Defesa um dia antes da derrubada do presidente
Por Ben Norton, publicado em 15 de dezembro de 2022 no Multipolarista.
Artigo original: https://multipolarista.com/2022/12/14/coup-us-ambassador-peru-cia/
*Imagem de capa: Dina Boluarte sentada sobre os primeiros resultados da sua ditadura pós-moderna com cara de golpe civil-militar clássico.
Caros acompanhantes do Terceiro Mundismo.
Deixo com vocês a tradução de um artigo sobre a conjuntura política recente do Peru.
O Ben Norton, apesar de suas relações contraditórias com agentes imperialistas travestidos de militantes progressistas e ‘da esquerda evolucionária’ tupiniquim, é um bom jornalista investigativo, desenvolvendo importantes reportagens dentro do quadro sociopolítico latinoamericano.
Estou fazendo essas considerações iniciais para não colocar os leitores em cascas de banana e para manter a objetividade de repassar informações de qualidade.
De resto, seguimos com o texto.
Boa leitura!
Joaquim
A ex-agente da CIA e embaixadora dos EUA no Peru, Lisa Kenna, se reúne com seu ministro da Defesa dois dias antes de um golpe contra o eleito presidente de esquerda Castillo.
A embaixadora dos Estados Unidos no Peru, Lisa Kenna, trabalhou para a CIA por 9 anos, assim como para o Pentágono. Um dia antes do golpe contra o presidente eleito de esquerda Pedro Castillo, Kenna se reuniu com o ministro da Defesa do Peru, que então ordenou que os militares se voltassem contra Castillo.
(Você pode ler este relatório em espanhol aqui.)
A embaixadora dos EUA no Peru, uma agente veterana da CIA chamada Lisa Kenna, reuniu-se com o ministro da Defesa do país apenas um dia antes de o presidente de esquerda eleito democraticamente, Pedro Castillo, ser derrubado por um golpe de estado e preso sem julgamento.
O ministro da Defesa do Peru, um general de brigada aposentado, ordenou que os militares se voltassem contra Castillo.
O golpe desencadeou protestos em massa em todo o Peru. O regime não eleito desencadeou uma violência brutal e a polícia matou vários manifestantes.
Enquanto isso, o governo dos EUA tem apoiado firmemente o regime golpista não eleito do Peru, que declarou um “estado de emergência” em todo o país e enviou militares às ruas na tentativa de esmagar os protestos.
A maioria dos governos da América Latina criticou ou mesmo se recusou a reconhecer o regime golpista não eleito do Peru, incluindo México, Argentina, Bolívia, Colômbia, Honduras, Venezuela, Cuba e vários países do Caribe (ponto de extrema importância, o golpe no Peru abriu um flanco de tensões diplomáticas dentro da América Latina, nota do tradutor).
A CIA organizou muitos golpes contra líderes de esquerda eleitos democraticamente na América Latina, desde o presidente da Guatemala, Jacobo Árbenz, em 1954, até o presidente do Chile, Salvador Allende, em 1973.
Quando o governo de Donald Trump nomeou Lisa Kenna para ser embaixadora no Peru em 2020, o Departamento de Estado divulgou um “certificado de competência” que revelava que “antes de ingressar no Serviço de Relações Exteriores, ela serviu por nove anos como oficial da Agência Central de Inteligência”.
Curiosamente, este fato importante está ausente da maioria das biografias de Kenna, incluindo sua página no site oficial da embaixada dos Estados Unidos.
Sob Trump, Kenna também atuou na Secretaria Executiva do Departamento de Estado e foi “assessora sênior” do secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo, que anteriormente chefiou a CIA.
Em relação ao seu trabalho para a notória agência de espionagem, Pompeo admitiu em 2019: “Eu era o diretor da CIA. Mentimos, enganamos, roubamos. Tínhamos cursos completos de treinamento.”
Em uma audiência de nomeação do Congresso em 2020, Kenna admitiu que, como secretária executiva, viu “quase todos” os memorandos enviados a Pompeo, acrescentando: “Estou ciente da grande maioria das” ligações feitas para e por ele.
Kenna também trabalhou anteriormente para o Departamento de Defesa e desempenhou funções no Departamento de Estado no Iraque, Jordânia, Egito, Suazilândia e Paquistão.
Quando o presidente Joe Biden entrou em janeiro de 2021, ele manteve Kenna como embaixador no Peru.
Em 6 de dezembro de 2022, Kenna se reuniu com Gustavo Bobbio Rosas, general de brigada aposentado do Exército peruano que havia sido oficialmente nomeado ministro da Defesa no dia anterior (grifo nosso). (Um meio de comunicação local informou que a reunião foi em 5 de dezembro, mas parece ter sido um erro.)
O Ministério da Defesa do Peru publicou uma foto de seu bate-papo amigável.
Na época dessa reunião, era sabido no Peru que o notoriamente corrupto Congresso controlado por oligarcas estava se preparando para uma nova votação para derrubar o presidente esquerdista democraticamente eleito Pedro Castillo.


O artigo 113 da constituição do Peru permite que o congresso unicameral destitua presidentes simplesmente votando para declarar que eles têm uma “incapacidade moral”, em um processo conhecido como “vaga”.
O congresso do Peru é bem conhecido por sua extrema corrupção. No infame escândalo “Mamanivideos”, parlamentares do partido de extrema-direita Fuerza Popular foram filmados subornando outros congressistas para votar contra o impeachment do ex-presidente de direita Pedro Pablo Kuczynski.
A Fuerza Popular é dirigida pelos familiares de Alberto Fujimori, o ditador de extrema-direita que governou o Peru com mão de ferro de 1990 a 2000. Com o apoio do governo dos Estados Unidos, Fujimori cometeu genocídio, esterilizando aproximadamente 300.000 indígenas, enquanto matava, torturando e fazendo desaparecer um grande número de dissidentes de esquerda (grifo nosso).
O escândalo Mamanivideos mostrou que é muito fácil para os oligarcas ricos do Peru comprar votos no Congresso para derrubar presidentes eleitos democraticamente.
E assim que Castillo assumiu o cargo em 28 de julho de 2021, o congresso tentou fazer exatamente isso.
Apenas um dia depois que o embaixador dos EUA se reuniu com o ministro da Defesa do Peru, em 7 de dezembro de 2022, o congresso dominado pela direita lançou um golpe parlamentar contra Castillo, usando o artigo 113.
Esta foi a terceira tentativa de golpe em pouco mais de um ano pelo congresso do Peru, que em setembro de 2022 tinha apenas 7% de aprovação.
Na esperança de impedir o golpe, Castillo respondeu tentando dissolver o congresso. Isso é permitido em casos de obstrucionismo pelo artigo 134 da constituição do Peru (grifo nosso).
O ministro da Defesa, Bobbio, denunciou imediatamente as ações do presidente. Ele publicou um vídeo renunciando ao cargo (que ocupou por apenas três dias).
No vídeo, Bobbio disse às forças armadas do Peru que não apoiassem o presidente Castillo e se opusessem à sua tentativa de dissolver o congresso golpista.
Bobbio alegou que Castillo estava lançando uma “tentativa de golpe”, mas na realidade Bobbio estava instruindo os militares peruanos a apoiar um golpe contra o presidente eleito democraticamente, em nome de um congresso notoriamente corrupto controlado por oligarcas que quase não tinha apoio da população (exceto os milhares de anos da história humana, os militares não participam da política no Mundo de Nárnia, no Planeta Arco-íris, ou em supostas análises de supostos especialistas, nota do tradutor).
Enquanto Bobbio ordenava que os militares se rebelassem contra o presidente, o governo dos Estados Unidos imediatamente atacou Castillo.
O ex-agente da CIA e atual embaixador Kenna twittou: “Os Estados Unidos rejeitam categoricamente qualquer ato extraconstitucional do presidente Castillo para impedir que o congresso cumpra seu mandato”.

Kenna não mencionou o artigo 134 da constituição do Peru, que afirma:
O Presidente da República está autorizado a dissolver o Congresso se este tiver censurado ou negado sua confiança a dois Conselhos de Ministros [nome oficial do gabinete do Peru]. O decreto de dissolução contém a convocação de eleições para um novo Congresso (grifo nosso).
Quando Castillo se moveu para dissolver o congresso, ele citou o artigo 134 e deixou claro que seria apenas um fechamento “temporário”. O presidente disse que novas eleições para o Congresso serão realizadas o mais rápido possível (grifo nosso).
Kenna ignorou todo esse contexto. Em vez disso, o embaixador declarou: “Os Estados Unidos exortam enfaticamente o presidente Castillo a reverter sua tentativa de fechar o congresso e permitir que as instituições democráticas do Peru funcionem de acordo com a constituição”.
Com isso, o veterano da CIA quis dizer que Castillo deveria simplesmente permitir que o congresso antidemocrático e controlado por oligarcas lançasse um golpe contra ele.
A embaixada dos EUA no Peru posteriormente publicou uma declaração oficial ecoando exatamente o que Kenna havia dito.
Esta foi a luz verde de Washington para que o congresso corrupto e de direita do Peru derrube o presidente Castillo e para que os serviços de segurança do estado o prendam, sem julgamento.
Poucas horas depois da prisão de Castillo, o congresso controlado pelos oligarcas nomeou sua vice-presidente, Dina Boluarte, como líder do país.
Boluarte prometeu no plenário do congresso que criaria “uma trégua política para instalar um governo de unidade nacional” – ou seja, um pacto com a direita.
Boluarte havia sido expulsa em janeiro de 2022 do partido esquerdista Peru Libre, com o qual Castillo havia feito campanha. Ela declarou com orgulho que “nunca havia abraçado a ideologia” do partido político socialista.
No dia seguinte ao golpe, em 8 de dezembro, o Departamento de Estado deu seu carimbo ao regime não eleito de Boluarte.
“Os Estados Unidos dão as boas-vindas à presidente Boluarte e esperam trabalhar com seu governo para alcançar uma região mais democrática, próspera e segura”, afirmou Brian A. Nichols, secretário adjunto dos EUA para assuntos do hemisfério ocidental.
“Apoiamos seu apelo por um governo de unidade nacional e aplaudimos os peruanos enquanto eles se unem em seu apoio à democracia”, acrescentou o principal funcionário do Departamento de Estado.

Enquanto isso, o povo peruano lotava as ruas, condenando o golpe contra o presidente eleito.
A polícia do Peru respondeu com violência, reprimindo duramente, matando vários manifestantes.
Em 14 de dezembro, o regime golpista impôs um “estado de emergência” nacional por 30 dias e disse que também poderia declarar toque de recolher.
Ao mesmo tempo, o regime golpista também disse que planeja condenar Castillo a 18 meses de “prisão preventiva”, sem um julgamento adequado que se assemelhe remotamente a um devido processo legal.
Apenas um dia antes de o regime golpista fazer esses anúncios autoritários, o ex-agente da CIA e atual embaixador dos EUA se reuniu com a líder não eleita do Peru, Dina Boluarte, e reiterou o apoio incondicional de Washington (grifo nosso).


Kenna elogiou o “governo de unidade” de direita que Boluarte prometeu formar, acrescentando: “Esperamos fortalecer nosso relacionamento bilateral”.

Brian Nichols, o principal funcionário do Departamento de Estado para a América Latina, acrescentou com um toque de profunda ironia: “Apoiamos o povo peruano e sua democracia constitucional”. Ele pediu aos manifestantes que “rejeitem a violência”.
No mesmo dia, México, Argentina, Bolívia e Colômbia divulgaram uma declaração diplomática conjunta com uma mensagem totalmente contrária, apoiando o presidente eleito Castillo, dizendo que ele foi vítima de “assédio antidemocrático” (grifo nosso).


Em uma coletiva de imprensa em 13 de dezembro, o Departamento de Estado foi questionado sobre os protestos no Peru.
O porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price – que, como Lisa Kenna, também era agente da CIA – enfatizou o firme apoio de Washington ao regime golpista do Peru.
“Parabenizamos as instituições peruanas e as autoridades civis por salvaguardar a estabilidade democrática”, disse ele, enquanto a polícia repressiva do Peru matava manifestantes.

Em vez de condenar a brutalidade policial desenfreada, o Departamento de Estado dos EUA culpou os próprios manifestantes. Price declarou: “estamos preocupados com relatos dispersos de manifestações violentas e relatos de ataques à imprensa e à propriedade privada, incluindo empresas”.
“Quando se trata da presidente peruana Dina Boluarte, é claro que a reconhecemos como tal. Continuaremos a trabalhar com as instituições democráticas do Peru e esperamos trabalhar de perto com o presidente Boluarte e todos os ramos do governo no Peru”, enfatizou o ex-agente da CIA.


Além de servir como agente da CIA por nove anos e atual embaixadora dos EUA no Peru, Lisa Kenna trabalhou como:
assessora político do secretário de defesa
diretora do escritório do Iraque no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca
vice-diretora do escritório político do Iraque no Departamento de Estado
chefe da seção política da embaixada dos Estados Unidos na Jordânia
oficial político/militar na embaixada dos EUA no Egito
funcionária da Embaixada dos Estados Unidos na Suazilândia
funcionária do consulado geral dos EUA em Peshawar, Paquistão
Em uma audiência de nomeação do Congresso em 23 de julho de 2020, Kenna se gabou de sua visão de mundo supremacista dos EUA, afirmando: “Quanto mais tempo estou no serviço público, mais estou convencido de que a América é a nação mais excepcional do mundo”.
Ela também prometeu: “Vou manter o relacionamento vital dos Estados Unidos com o Peru, que há muito é um de nossos parceiros mais próximos na região. Recentemente, a Mission Peru teve um desempenho heroico para sustentar nossa forte parceria e servir nossos compatriotas americanos nestes tempos difíceis.”
Na época da audiência, o Peru tinha um governo de direita, liderado pelo presidente Martín Vizcarra.
Kenna elogiou o governo conservador do Peru, “como fundador do Grupo de Lima”, por apoiar os Estados Unidos em sua tentativa de golpe de direita contra o presidente democraticamente eleito da Venezuela, Nicolás Maduro, afirmando: “Os EUA e o Peru também estão aumentando nosso apoio compartilhado a uma retorno pacífico à democracia na Venezuela”.
Ela também prometeu na audiência que, como embaixadora dos Estados Unidos no Peru: “Eu me comprometo a me encontrar com figuras da oposição de orientação democrática”; “Também nos comprometemos a nos reunir com a imprensa local independente no Peru”; e “Estou empenhado em me reunir com organizações de direitos humanos, sociedade civil e outras organizações não governamentais nos Estados Unidos e no Peru”.
Esclarecimento: este artigo originalmente informava que o encontro entre o embaixador dos Estados Unidos e o ministro da Defesa peruano foi em 5 de dezembro, dois dias antes do golpe, com base em um artigo de um jornal local, mas esse meio de comunicação parece ter se enganado, e o real reunião foi em 6 de dezembro, um dia antes do golpe.